segunda-feira, 30 de abril de 2012

Rondon do Pará: porta para o tráfico humano


Carlos Bordalo, deputado presidente da CPI do Tráfico Humano
Em junho de 2011, o pintor Gilvan Santos foi abordado por um policial quando dirigia na cidade de Deerfield Beach, na Flórida (EUA). Estava sem documentação. Não demorou e dois agentes da imigração surgiram para encaminhar Santos à prisão em Pompano Beach. Gilvan e a mulher Celma estavam há oito anos nos Estados Unidos. Vinham de Rondon do Pará. No mesmo mês em que o paraense foi detido, cinco brasileiros foram presos em Nova Jersey. Nacip Pires, 47 anos; Rubens da Silva, 39; Sanderlei Alves da Cruz, 31; Francismar da Conceição, 36 e Claudinei Mota, 34, foram acusados de pertencer a uma quadrilha especializada na migração ilegal de brasileiros aos Estados Unidos.

Um elo une a detenção do pintor paraense e dos cinco presos. Rondon do Pará. O município, localizado no sudeste paraense, distante cerca de 560 quilômetros da capital, seria um dos mais improváveis corredores da imigração ilegal no Brasil, mas há cerca de duas décadas vem realizando tráfico de pessoas para Europa e Estados Unidos da América (EUA). Pelo menos seis mil pessoas teriam saído de Rondon do Pará em 20 anos. A maior parte é formada por jovens bonitas que ao chegar em solo americano passa a trabalhar em boates como dançarinas. Mas há espaço também para outros tipos de profissionais, que sonham com dias melhores em outro país.

O esquema vem sendo investigado pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Tráfico Humano, na Assembleia Legislativa do Pará. Em março, a CPI realizou uma sessão especial para discutir o problema. Na ocasião, foram ouvidos relatos de moradores que foram e estão sendo vítimas dessa prática de extorsão no município. A rota Rondon-EUA passa por São Paulo e usa como porta de entrada para o solo norte-americano desertos no México ou Guatemala. Além da entrada ilegal nos Estados Unidos, a quadrilha utiliza um expediente que dá garantia de pagamento dos que se embrenham na aventura da migração clandestina aos aliciadores. Em Rondon do Pará, algumas agências de turismo participam do esquema, segundo apuraram os deputados.

Ao realizar o empréstimo para financiar a empreitada, os agiotas ligados à rede, exigem que as pessoas ao chegar ao exterior se comprometam a reembolsar mensalmente certa quantia pelos serviços ofertados e contratados. O dinheiro também é para efetuar o pagamento do “coiote”, responsável por facilitar o tráfico de pessoas na fronteira do México para várias partes do mundo.



CRIME EM CARTÓRIO
 

O pagamento é garantido via compromisso firmado em cartório. Aos que recebem o dinheiro, é exigido que deixem como garantia algum imóvel. Uma casa ou terreno, de preferência. Os termos são lavrados em cartório. Quem parte se compromete a pagar as prestações. Quem fica vive assombrado com a possibilidade real de perder casa ou outras propriedades.

Há casos como o de M.S.M, mulher que perdeu o terreno para um agenciador em garantia das despesas de viagem do marido aos Estados Unidos. Ou a do mototaxista A.R. da S. que teve o pai morto no México. Mesmo assim teve de desembolsar R$ 16 mil para a quadrilha.

Em 2009, D, pagou R$ 8 mil e quase perde a casa da mãe, dada como garantia em empréstimo para imigração ilegal. Trabalhadora de uma drogaria em Rondon, V. tentou entrar nos Estados Unidos através do México. Não conseguiu e voltou. Mesmo assim teve de pagar a dívida contraída.

DÍVIDAS E MORTES

“Várias vítimas denunciaram que as pessoas são, inclusive torturadas e estupradas na Guatemala em função de dívidas não pagas pelos agenciadores em Rondon do Pará”, diz o deputado Carlos Bordalo (PT), relator da CPI. “A rede é formada por uma quadrilha articulada que age sem medo no município, colocando em risco a vida financeira da vítima e de seus familiares.

Algumas vítimas são obrigadas a entregar os bens que possuem para pagar a dívida”, diz o deputado.

No dia 10 de abril, duas vítimas - um homem e uma mulher - desse tipo de agenciamento em Rondon do Pará depuseram em Belém. Com máscaras protegendo os próprios rostos relataram como funciona o esquema.

“Geralmente a questão é assim: não é a própria pessoa que vem oferecer o serviço, oferecer empréstimo de dinheiro ou coisa parecida”, disse o homem. “A pessoa chega e oferece assim: ‘olha se você quer ir nós arranjamos uma pessoa que te leve, sabe? Só que essa pessoa que oferece para levar geralmente não é de Rondon. As pessoas que são de Rondon arcam com o dinheiro. Elas emprestam”, complementou a mulher.

Segundo o relato dos dois depoentes, o auge do tráfico foi há cinco anos. De lá para cá, depois que a crise econômica se instalou nos Estados Unidos, o movimento diminuiu, mas também ficou mais complicado aos que estão lá cumprir os pagamentos.

“Hoje está difícil entrar. Inclusive em Rondon já foi assassinada gente que foi para lá, mas que foi morta no México”, afirmou a vítima. Segundo ela, as despesas pagas aos atravessadores são em média de R$ 30 mil. “A pessoa fica devendo, de papel assinado”, complementou o homem. Segundo ele, se for casa tem de ser de alvenaria, bem construída. “Eles ‘empenham’ eles ‘penhoram’, aí vai no cartório e passa um documento dizendo que ‘se fulano ou outra pessoa não pagar a dívida, eu tomo a propriedade. É assim”, explicou.

O relatório da CPI ainda não está concluído, mas a intenção do relator é que as informações sejam repassadas à Polícia Federal e também subsidiem os deputados federais em CPIs semelhantes que estão ocorrendo em âmbito nacional.

AGÊNCIAS DE TURISMO E CARTÓRIOS DÃO SUPORTE A TRÁFICO

Ao depor na CPI em Belém, a mãe de uma das vítimas mostrou detalhadamente como funciona o esquema da quadrilha. O filho dela tinha 19 anos. “Ele não queria ir, mas um colega chegou e disse pra ele: ‘olha aqui está muito ruim pra gente ganhar dinheiro, trabalhar...eu vou te ajudar, vou arrumar um dinheiro e vou mandar você ir, só que tem um detalhe, você vai numa companhia que tem em Goiânia, que é de turismo e você vai legal’. Ele mentiu pra ele. Aí ele pegou e arranjou dinheiro emprestado. Foram R$ 14 mil”.

“Depois ele me levou no cartório, já era cinco horas da tarde. Chegou lá, eu falei assim: ‘olha, mas você não me explicou como é que é esse documento que vou ter que fazer’. Ele disse: ‘não precisa a senhora se preocupar porque a moça aqui do cartório já sabe como fazer esse documento. Ela já tá acostumada a fazer esse documento aqui pro pessoal”.

O filho conseguiu entrar nos Estados Unidos. Mas a duras penas. “Os homens ‘levou’ ele, mas chegou no México abandonaram ele. Meu filho foi preso, depois foi pro deserto, uma mexicana levou ele, porque ele estava preso lá, abandonado. Atravessou numa boia, o jacaré quase comeu ele. Passou 14 dias no deserto, perdido. Conseguiu sair no Texas. Inclusive ele achou um rapaz no meio da estrada que estava com a perna quebrada. Ele foi arrastando 20 km esse rapaz, mas conseguiu atravessar. Quando chegou lá, sem dinheiro nem nada, o pessoal viu que ele tinha ajudado esse rapaz e mandou meu filho para um amigo nosso que morava em Denver, que já tinha anos que morava lá. Nós ficamos loucos ligando pra esse homem”.

Foram quatro anos trabalhando nos Estados Unidos, como pintor e fazendo outros tipos de serviços. O problema é que o dinheiro enviado por ele, estava sendo desviado pela irmã do intermediário.

A mãe da outra vítima, o homem que também depôs na CPI, perdeu a casa para os agenciadores. “Minha mãe é uma senhora com 72 anos de idade. É viúva. Meu pai deixou o único bem para minha mãe que foi uma casa bem localizada no centro da cidade, uma casa que hoje está no valor de R$ 80 mil, mas que foi entregue ao agiota por R$ 21 mil, por conta de uma dívida contraída pela viagem de um sobrinho dentro do esquema. Hoje minha mãe mora de aluguel, pagando R$ 450 por mês. E todo dia passa em frente a casa que era dela”. 

Fonte: Ismael Machado/Diário do Pará

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